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Lei 15.270/2025, dividendos e Simples

Com a sanção da Lei nº 15.270, de 26 de novembro de 2025, foi reaberto o espaço para um importante debate no Brasil, que consiste nos limites da tributação da renda sem esmagar justamente quem o texto constitucional ordena proteger, que são as microempresas, as empresas de pequeno porte e os pequenos empresários.

A norma alterou as Leis nº 9.250/1995 e 9.249/1995 para: (i) ampliar a faixa de isenção do IRPF para quem ganha até R$ 5.000 mensais; (ii) instituir o chamado “Imposto de Renda da Pessoa Física Mínimo” (IRPFM) para altas rendas; e (iii) criar uma sistemática de tributação de lucros e dividendos, inclusive com retenção na fonte de 10% sobre distribuições mensais superiores a R$ 50 mil por pessoa jurídica a uma mesma pessoa física, a partir de 2026.

Para o governo federal, essa nova tributação alcançaria empresas de qualquer regime de tributação, englobando o Simples Nacional, lucro presumido e lucro real. Assim quando da distribuição do lucro acima daqueles limites, a lei se aplicaria.

A meu ver, essa leitura ignora a arquitetura constitucional do Simples Nacional e entra em colisão frontal com a reserva de lei complementar prevista no artigo 146, III, “d”, da Constituição, bem como com a isenção expressa estabelecida no artigo 14 da LC 123/2006.

O objetivo deste artigo é sustentar a tese de que a Lei 15.270/2025 não se aplica, quanto à tributação de lucros e dividendos, às empresas optantes pelo Simples Nacional — e que qualquer interpretação em sentido diverso viola a Constituição e desfigura o papel protetivo do regime simplificado, voltado não apenas às pequenas pessoas jurídicas, mas também aos pequenos empresários que delas retiram seu sustento.

Desenho da lei: IRPFM e tributação de lucros

A Lei nº 15.270/2025 surgiu da conversão do PL 1.087/2025, com três pontos principais:

Reajuste da tabela do IRPF
– Isenção para rendimentos mensais até R$ 5.000, com efeitos a partir de 2026.

Instituição do IRPF Mínimo (IRPFM)
– Incidente sobre pessoas físicas cuja soma anual de rendimentos (tributáveis, isentos e exclusivos) ultrapasse R$ 600 mil, com alíquota progressiva até 10% (teto para rendimentos anuais iguais ou superiores a R$ 1,2 milhão).

Tributação de lucros e dividendos
– Retenção na fonte de 10% sobre lucros/dividendos pagos, creditados, empregados ou entregues por uma mesma pessoa jurídica a uma mesma pessoa física em valor superior a R$ 50 mil por mês, a partir de 2026.
– Regras de transição para lucros aprovados até dezembro de 2025, que poderão ser distribuídos até 2028 com preservação de isenções.

A redação da norma é clara no sentido de abranger os “lucros e dividendos pagos por pessoa jurídica” sem qualquer distinção de regimes. Daí surgem leituras no sentido da aplicação da Lei nº 15.270 ao Simples Nacional por essa ausência de diferenciação.

Aqui temos um ponto de fundamental relevância, ao passo que uma lei ordinária não “se sobrepõe” a uma lei complementar em matéria reservada à lei complementar pela Constituição e, no caso do Simples Nacional, essa reserva é expressa.

Lugar constitucional do Simples e reserva de lei complementar

A Constituição de 1988 determina que cabe à lei complementar, entre outras matérias, instituir regimes tributários diferenciados e favorecidos para microempresas e empresas de pequeno porte (artigo 146, III, “d”, e parágrafo único) e, esse comando é reforçado por outros dispositivos constitucionais. O artigo 170, IX reconhece a necessidade de tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e o art. 179 traz o dever da União, Estados, DF e Municípios de dispensar às microempresas e empresas de pequeno porte “tratamento jurídico diferenciado, visado a incentivá-las”.

Na ADI 5.469, o STF foi explícito no sentido de que matéria relativa ao regime tributário diferenciado e favorecido destinado a microempresas e empresas de pequeno porte, que é o Simples Nacional, é tema reservado à lei complementar, de modo que atos infralegais ou normas de hierarquia inferior não podem alterar seu núcleo.

Portanto, qualquer tentativa de submeter as microempresas e empresas de pequeno porte optantes pelo Simples a uma nova forma de tributação da renda, sobretudo de seus lucros, demanda lei complementar que altere a LC 123/2006. Uma lei ordinária não pode fazê-lo.

É esse o ponto de partida: a Lei 15.270 é lei ordinária. Logo, em matéria de regime diferenciado das micro e pequenas empresas, ela só pode atuar de forma residual, sem afetar o núcleo definido pela LC 123.

Art. 14 da LC 123 e isenção dos lucros do Simples

O artigo 14 da Lei Complementar 123/2006 [1] dispõe sobre a isenção de imposto de renda na distribuição de lucros efetuada por empresas no Simples Nacional. O § 1º desse artigo limita a isenção ao “lucro presumido” quando a empresa não mantém escrituração contábil, utilizando os percentuais do artigo 15 da Lei 9.249/1995. Já o § 2º retira esse limite quando há escrituração contábil regular, permitindo a isenção sobre todo o lucro efetivamente apurado.

A Resolução CGSN 140/2018 reproduz essa sistemática e reforça a lógica: a regra é a isenção do IRPF sobre lucros distribuídos por empresas do Simples, condicionada apenas à observância dos parâmetros legais e contábeis.

Ademais, a Solução de Consulta Cosit nº 244/2025, recentemente publicada, aprofunda esse raciocínio em relação à tributação do sócio de empresa do Simples. A Receita Federal afirma, em síntese, que:

– a IN RFB 1.700/2017 não se aplica às empresas optantes pelo Simples Nacional (art. 1º, §2º);
a isenção do IRPF sobre lucros distribuídos por ME/EPP do Simples decorre diretamente do art. 14 da LC 123 e do art. 145 da Resolução CGSN 140;
– o lucro total mensal ou anual distribuído aos sócios permanece isento se houver escrituração contábil que demonstre lucro superior ao limite do § 1º do art. 14;
– na ausência de escrituração contábil, a isenção permanece limitada ao “lucro presumido” calculado com base nos percentuais previstos na Lei 9.249/1995, abatido o IRPJ embutido no DAS.

Percebe-se que a própria Receita Federal, em sua própria interpretação oficial, reconhece que a disciplina da isenção de lucros no Simples está integralmente ancorada na LC 123 e na Resolução CGSN 140, e que atos normativos gerais de IRPJ/CSLL/IRPF não se aplicam automaticamente às empresas do Simples.

Assim, essa é a linha de raciocínio que deve ser utilizada para a análise da Lei nº 15.270/25.

Por que a lei não alcança os lucros das empresas do Simples?

Partindo da arquitetura constitucional e da disciplina específica da LC 123, a tese da inaplicabilidade da Lei nº 15.270 às empresas do Simples se sustenta em três pilares: hierarquia, especialidade e coerência sistemática.

Hierarquia e reserva de lei complementar

Se a Constituição reservou à lei complementar a instituição e modificação do regime tributário diferenciado e favorecido das micro e pequenas empresas (artigo 146, III, “d”), uma lei ordinária não pode reduzir o alcance da isenção prevista no artigo 14 da LC 123.

Qualquer leitura da Lei nº 15.270/25 que pretenda submeter os lucros de uma empresa no Simples Nacional à retenção de 10% na fonte, ou a tratamento equivalente, implicaria em:

– revogar tacitamente a isenção de que trata o art. 14; ou
– criar um “novo” imposto de renda sobre rendimentos que o legislador complementar expressamente declarou isentos “na fonte e na declaração de ajuste”.

Ambas as alternativas afrontam o texto constitucional e o entendimento consolidado do STF de que normas relativas ao tratamento tributário diferenciado de MEs e EPPs são matérias privativas de lei complementar.

Especialidade: LC 123 como lex specialis

A LC 123/2006 é lei complementar especial destinada a disciplinar um regime unificado e favorecido de tributação, inclusive no que diz respeito à tributação na pessoa física dos respectivos sócios (artigo 14). Por outro lado, a Lei nº 15.270 é lei ordinária geral sobre IRPF, IRPFM e tributação de dividendos.

Nessa colisão aparente, não é apenas a hierarquia das normas que se impõe; é também o critério da especialidade ao passo que quando uma lei especial (LC 123) trata de forma exaustiva da tributação dos lucros do Simples Nacional, uma lei geral posterior (Lei 15.270) só se aplica naquilo em que não contrariar a disciplina especial e desde que respeite a reserva de lei complementar.

Ora, o artigo 14 da LC 123 afirma, de forma categórica, que os valores distribuídos a sócios de empresas do Simples — excluídos pró-labore, aluguéis e serviços — são isentos na fonte e na declaração de ajuste. Ao criar uma retenção na fonte de 10% sobre lucros distribuídos, a Lei nº 15.270 não pode, sem violar a especialidade e a hierarquia, incluir nesse campo justamente aqueles lucros que a lei complementar declarou isentos.

Coerência com a interpretação da própria Receita

A lógica adotada pela Solução de Consulta Cosit 244/2025 é a mesma que deveria orientar a leitura da Lei 15.270: normas gerais de IRPJ/IRPF não se aplicam automaticamente às empresas do Simples quando colidem com a disciplina própria da LC 123.

Na SC 244, a Receita:

– afasta a aplicação da IN 1.700/2017 às empresas do Simples;
– reafirma que a isenção dos lucros distribuídos decorre diretamente da LC 123;
– admite, inclusive, a isenção em bases mensais, desde que haja escrituração contábil que demonstre o lucro correspondente.

Transportar essa mesma lógica para a Lei 15.270 conduz à conclusão de que as regras de retenção de 10% sobre lucros mensais superiores a R$ 50 mil não se aplicam às distribuições feitas por empresas optantes pelo Simples Nacional, que permanecem regidas pelo artigo 14 da LC 123 e a disciplina do IRPFM, embora incidente sobre a pessoa física em razão da soma global de seus rendimentos, não autoriza tratar como “tributáveis” lucros que a lei complementar expressamente qualificou como isentos na fonte e na declaração de ajuste.

Não se trata de “blindar” os sócios de empresas do Simples de qualquer impacto da reforma da renda, mas de preservar a coerência de um regime constitucionalmente protegido.

Simples como benefício que protege a empresa e o empresário

Costuma-se falar do Simples Nacional como um “regime simplificado de recolhimento de tributos”, o que é verdade, mas incompleto. Tanto a Constituição quanto a LC 123 revelam que se trata de um benefício fiscal estruturante, voltado a proteger as microempresas e as empresas de pequeno porte e amparar os pequenos empresários, cuja renda está indissociavelmente vinculada ao desempenho da pessoa jurídica.

O STF, ao julgar controvérsias sobre o regime, já destacou que o tratamento diferenciado às MEs e EPPs é um mandamento constitucional de fomento, ligado aos artigos 146, III, “d”, 170, IX e 179 da CF.

A isenção do artigo 14 da LC 123 não é um detalhe do sistema. Ela é sim a forma concreta pela qual o constituinte escolheu proteger a renda do pequeno empresário, evitando que ele seja tributado duas vezes na pessoa jurídica, por meio do DAS, que concentra tributos federais, estaduais e municipais e na pessoa física, ao retirar lucros do negócio para manter sua subsistência.

Sob a ótica da justiça tributária, aplicar a Lei nº 15.270 às empresas do Simples Nacional para tributar lucros acima de R$ 50 mil mensais significaria igualar o pequeno empresário bem-sucedido à grande estrutura societária que distribui milhões em dividendos, ignorando por completo a diferença de capacidade contributiva e o mandamento constitucional de tratamento favorecido.

IRPFM e microempresário: debate distinto

A tese da inaplicabilidade da Lei nº 15.270 às empresas do Simples é clara e direta quanto à impossibilidade de retenção de 10% na fonte sobre lucros distribuídos por ME/EPP optantes pelo Simples, sob pena de violação ao artigo 14 da LC 123 e à reserva de lei complementar do artigo 146, III, “d”, da CF.

Ademais, com relação ao IRPFM, o debate é complexo porque a lei parte da soma de rendimentos tributáveis, isentos e exclusivos para garantir uma alíquota mínima efetiva. Ainda assim, mesmo nesse plano, os rendimentos isentos por força de lei complementar especial, como os lucros do Simples, não podem ser tratados como “base de cálculo disfarçada” de um novo imposto mínimo, sob pena de esvaziar o conteúdo da isenção.

Preservar a coerência do sistema e a confiança do pequeno empreendedor

A Lei nº 15.270 promoveu uma mudança relevante no regime do Imposto de Renda da pessoa física pois ampliou a isenção da base salarial, instituiu um imposto mínimo para altas rendas e passou a tributar lucros e dividendos distribuídos em patamares determinados.

Nada disso, porém, leva à conclusão de que os lucros distribuídos por microempresas e empresas de pequeno porte optantes pelo Simples estarão sujeitos à retenção de 10% na fonte a partir de 2026 ou que a isenção do artigo 14 da LC 123 tenha sido revogada ou restringida por lei ordinária.

Data vênia opiniões contrárias, o entendimento deve ser o oposto ao passo que a Constituição reserva à lei complementar a disciplina do regime tributário diferenciado das MEs e EPPs (artigo 146, III, “d”) e, a LC 123/2006, em seu artigo 14, estabelece isenção expressa dos lucros distribuídos por empresas do Simples na fonte e na declaração de ajuste, condicionada apenas a requisitos contábeis e de apuração.

Como se não bastasse, a própria Receita Federal, na SC Cosit 244/2025, reafirmou que a disciplina dos lucros do Simples está ancorada na LC 123/06 e em normas específicas, afastando a aplicação automática de regulamentações gerais de IRPJ/IRPF.

Em um cenário em que o discurso oficial da reforma da renda se baseia em aumentar a tributação dos mais ricos, é preciso impedir que, por interpretação apressada, o pequeno empresário, optante do Simples Nacional, acabe sendo arrastado para um modelo de tributação pensado para as grandes fortunas e grandes estruturas societárias.

Fonte: Consultor Jurídico, 4 de dezembro de 2025

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